Sabe aquelas pessoas que marcam a história não por seguir o caminho pronto, mas por criarem o seu próprio, movidas por uma ética inabalável e um olhar humano? Nise da Silveira foi, sem dúvida, uma dessas almas revolucionárias. Ela nos ensinou que o tratamento em saúde mental pode, e deve, passar pelo respeito, pela criatividade e pela força transformadora do afeto. E nessa jornada, ela encontrou um poderoso aliado no pensamento do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung.
Um Olhar Rebelde em Tempos de Violência
Nise da Silveira se formou em medicina em 1926, sendo a única mulher em uma turma de 158 alunos.

Conta-se que não havia sequer banheiro feminino na faculdade! Desde cedo, ela se especializou em psiquiatria e neurologia. Mas sua prática nunca aceitou as formas agressivas de tratamento que eram comuns na época. Falamos de um tempo onde a psiquiatria convencional recorria a métodos como a lobotomia – uma psicocirurgia que interrompia conexões nos lobos frontais – e a eletroconvulsoterapia (eletrochoques). Havia a alegação de 90% de sucesso da lobotomia em um hospital, equiparando-se a centros cirúrgicos da Europa e América do Norte. Mas Nise não acreditava em “cura pela violência”. Ela chegou a confrontar um colega, dizendo que ele usava os pacientes para “experiências sádicas” e que sua única vantagem sobre eles era a força. Seu instrumento, ela dizia, era o pincel; o deles, o picador de gelo.
Após um período afastada do serviço público, inclusive por ter sido presa, Nise é readmitida como psiquiatra no Hospital de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, em 1944. Em 1946, ela retoma o Setor de Terapêutica Ocupacional (STO).
A Força Curativa do Fazer com as Mãos: “A Emoção de Lidar”
Nise da Silveira não via a terapia ocupacional como apenas uma forma de manter os pacientes ocupados, o que era a visão tradicional da “laborterapia”, “praxeterapia” ou “ergoterapia”. Para ela, as atividades manuais e expressivas eram uma porta de entrada para o mundo interno dos doentes. Era utilizar as atividades como meios de expressão da problemática interna deles.
Essa ideia se conecta com um conceito lindo que surgiu da intuição de um paciente que trabalhava na oficina: “A emoção de lidar”. É a emoção, a conexão que surge ao trabalhar com os materiais, seja o barro, a tinta, o tecido. É nesse contato que a pessoa pode se expressar, se revelar, ir além das limitações impostas pela doença. Para Nise, o trabalho com as mãos não era algo “servil”; era algo que expressava a alma da pessoa, feito com carinho ou estupidez, mas sempre revelador.
O Poder que Transforma: “Afeto Catalisador”
Além do fazer, o tratamento proposto por Nise era profundamente baseado no afeto. Ela via o afeto como um “afeto catalisador”, capaz de se disseminar e ajudar na cura. Esse conceito envolve um respeito irrestrito ao ser humano, a defesa de sua dignidade e a ausência de discriminação. Combater o que aleija as capacidades de alguém e dar vazão às suas potencialidades era fundamental para ela.
Na Casa das Palmeiras, instituição que ela fundou em 1956 como um modelo de “externato” (atendimento diurno) para egressos de hospitais psiquiátricos, não havia médicos de jaleco ou enfermeiras no modelo tradicional. Havia monitores que ajudavam os “clientes” (termo que Nise preferia usar em vez de “pacientes” para reforçar a relação de troca e dignidade – ela considerava “paciente” um termo pejorativo, associado à passividade). As portas e janelas estavam sempre abertas, criando um ambiente acolhedor e livre.
Nesse espaço de afeto e liberdade, Nise também introduziu os animais como co-terapeutas. Sua própria relação com os gatos (como Lord Byron, que urinou no paletó de um colega!) era parte de sua visão de mundo, onde a vida e as relações se expandiam para além do puramente humano. Ela chegou a fundamentar teorias sobre a importância do animal co-terapeuta a partir da relação com seu próprio cachorro Sertanejo.
O Encontro com Jung: Desvendando o Inconsciente
A busca de Nise para entender o que acontecia “dentro da cuca do esquizofrênico” a levou à Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung. Enquanto a psiquiatria predominante dava pouca atenção aos fenômenos internos da psicose, Nise queria penetrar nesse “mundo interno”, que era considerado inexistente pelo modelo cartesiano.

Jung acreditava que a psique, assim como todo organismo vivo, possui um potencial reorganizador e autocurativo. Esse potencial se manifesta em formas simbólicas, como as imagens que surgem espontaneamente no inconsciente. Para Jung, e Nise, a psiquiatria tinha o dever de decifrar essa linguagem simbólica. Ele afirmava que, enquanto o neurótico se trata pela palavra (psicanálise), o esquizofrênico se trata pela imagem, pois a palavra não dá conta de seu mundo interno.
Nas pinturas e modelagens produzidas nos ateliês, Nise observou a recorrência de imagens primordiais (arquétipos) e formas circulares, em especial o círculo, que Jung chamava de mandala. Essas formas circulares simbolizavam a tentativa da psique de buscar a unidade e a reorganização.
Em 1954, Nise enviou uma carta a Jung com fotografias das pinturas de seus clientes, que continham mandalas ou formas aproximadas. Jung ficou muito impressionado com a riqueza das obras, algo que ele considerava raro na produção de esquizofrênicos. Ele reconheceu nelas uma demonstração empírica convincente da psicologia analítica. Jung aconselhou Nise a conhecer mais a biografia de cada paciente e notou que eles trabalhavam “cercados por pessoas que não entendiam do inconsciente”. Esse intercâmbio marcou o início da introdução da psicologia junguiana na América Latina.
Museu, Casa e um Legado de Luta

Do material riquíssimo produzido nos ateliês, Nise criou o Museu de Imagens do Inconsciente (MII) em 1952, um espaço para estudo, pesquisa e divulgação dessas obras.
E, como mencionamos, a Casa das Palmeiras demonstrou durante 30 anos que era possível quebrar o ciclo de reinternações. Clientes que haviam passado por mais de 10 internações deixaram de se reinternar após frequentar a Casa. Nise afirmava com convicção que “o problema não está tanto no doente, mas naqueles que são responsáveis pelos doentes”, referindo-se à incompreensível indiferença de alguns profissionais e gestores.
Nise da Silveira foi uma crítica contundente da “indústria da loucura”, denunciando como a lucratividade da internação e reinternação, muitas vezes impulsionada pelas multinacionais farmacêuticas, perpetuava o sofrimento. Sua voz se uniu a outros na luta antimanicomial e pela reforma psiquiátrica brasileira, que buscou substituir o modelo carcerário por uma atenção de base comunitária e humanizada, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs). A reforma psiquiátrica, com todos os seus “poréns”, constituiu um passo essencial para a garantia dos direitos humanos e a cidadania das pessoas com transtornos mentais.
O trabalho de Nise é reconhecido internacionalmente e ela é considerada uma das mulheres mais importantes do Brasil no século XX. Ela se tornou um símbolo de luta, de defesa dos direitos humanos, e um arauto das liberdades e do respeito ao diferente. Seu legado nos inspira a lutar pela inclusão de perspectivas afetivas não discriminatórias e a reconhecer que, em qualquer indivíduo, mesmo naquele considerado “esfarrapado” ou “louco”, existem forças criadoras e um potencial autocurativo que apenas esperam apoio, amor e calor humano.
A psiquiatria moderna ainda busca decifrar os mistérios da mente, mas a jornada de Nise da Silveira nos mostra um caminho luminoso: aquele que passa pela valorização da expressão criativa, pela profundidade do mundo interno e, acima de tudo, pelo poder transformador do afeto. Como ela mesma disse, “Há 10.000 modos de ocupar-se da vida e de pertencer à sua época”, e entre todos os infelizes, ela se sentiu mais atraída pelos loucos e pelos animais.
Nise, Jung, o fazer com as mãos, o afeto catalisador… Uma revolução que continua a nos inspirar a olhar o abismo da psique com curiosidade e coragem, buscando sempre a dignidade e a humanidade em cada encontro.
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Referências:
• Excertos do filme “Nise: O Coração da Loucura” (2015).
• Excertos de “Nise da Silveira – A emoção de lidar – A revolução pelo afeto – montagem na beira do abismo.mp4”.
• Excertos de “Nise da Silveira – Livro.pdf” (O RESGATE HISTÓRICO COMO MÉTODO PARA A CONSTRUÇÃO DA PSICOLOGIA).
• Excertos de “Nise da Silveira – Posfácio: Imagens do Inconsciente.mp4”.
• Excertos de “apresentação nise.pdf”.
• Excertos de “ocupacao_nise_da_silveira_itau.pdf” (Ocupação Nise da Silveira – Itaú Cultural).